Regulação das 'big techs' deve resguardar pleno exercício da cidadania digital
Debates sobre a responsabilização das plataformas têm priorizado a defesa dos direitos de usuários. É pouco para garantir filtros de confiança no diálogo social
BOLETIM QUINZENAL #12 - 2025
Olá, pessoas.
Aqui no Observatório, eu e Daniela Germann temos tentado sinalizar possíveis respostas ao avanço da desinformação e da credulidade em quem não é honesto com fatos e evidências, à queda de credibilidade na produção jornalística e à crise de confiança nos filtros de moderação social sobre a realidade.
Publicada há alguns dias, a edição deste ano do relatório Digital News Report mostra que a influência das mídias sociais e das plataformas continua avançando no consumo de notícias. Pela primeira vez nos Estados Unidos, a TV deixou de ser a principal fonte de acesso a informações jornalísticas. Já por aqui, diz o levantamento do Instituto Reuters, o crédito dado ao Jornalismo é o mais baixo em uma década.
“Criadores de conteúdo” crescem na preferência dos públicos que buscam por notícias na internet, especialmente dos mais jovens. Jornalistas e organizações noticiosas enfrentam um processo lento e gradual de desintermediação promovido pelas grandes empresas de tecnologia, que controlam os recursos de produção, distribuição e consumo.
Estima-se, por exemplo, que mais da metade da receita com publicidade neste ano será proveniente de conteúdos produzidos por usuários nas mídias sociais, incluindo vídeos, podcasts e postagens de influenciadores, políticos e personalidades prestigiadas em seus próprios perfis.
É um fenômeno global, embora haja diferenças entre os países, dependendo de aspectos culturais, econômicos e políticos. Nos mais ricos e menos polarizados, por exemplo, o consumo de notícias e a credibilidade no Jornalismo ainda tendem a ser maiores.
Outro levantamento, do projeto Mais Pelo Jornalismo, aponta que, entre 2014 e 2024, desapareceram do ecossistema informativo brasileiro 2,3 mil veículos noticiosos. Esse é o déficit na comparação entre os negócios jornalísticos que abriram e os que fecharam em uma década no país.
É claro que pesa sobre a pandemia de Covid-19 parte da culpa. Mas a commoditização de conteúdos e o monopólio digital das big techs estão também entre as principais as causas.
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Só no ano passado, nove das grandes empresas de tecnologia faturaram juntas 2,11 trilhões de dólares. É um montante superior ao Produto Interno Bruto da décima segunda maior economia do mundo, a Coreia do Sul, conforme classificação do Fundo Monetário Internacional.
Uma das razões para o crescimento das big techs tem sido a adaptação de seus planos de negócio para abocanhar o mercado da indústria de mídia. Suas plataformas são, em escala global, a principal fonte de acesso a entretenimento, publicidade e informação.
Essas empresas transformaram a comunicação numa espécie de “diz-que-me-disse” digital, sem regras nem moderação, “pivotando” os negócios constantemente para afastar intermediários incômodos na produção da principal “commodity cognitiva” que faz girar a economia da atenção: o conteúdo.
No jargão corporativo, pivotar significa fazer mudanças estratégicas no rumo das empresas para aproveitar novas oportunidades, mesmo quanto o plano inicial já oferece bons resultados a elas.
Aqui é Luciano Bitencourt, pensando alto sobre como a concentração de poder das grandes empresas de tecnologia vai além do campo econômico. Como enfatizam os professores e pesquisadores europeus Thomas Meier e Kristina Khutsishvili, as big techs exercem uma soberania que enclausura a democracia, privatiza bens públicos digitais e põe em risco a vida cívica.
Basta rolar a tela e a gente conversa melhor a respeito.
Efeitos restritivos
Já há maioria no Supremo Tribunal Federal (STF) para responsabilizar as plataformas quando sues usuários publicarem conteúdos ilegais. O que ainda não está claro no julgamento que flexibiliza o artigo 19 do Marco Civil da Internet é como será a autorregulação proposta pelos magistrados quando a decisão for homologada.
Tem sido um mantra para as big techs afrouxar as regras de moderação de conteúdo em nome da liberdade de expressão. Mesmo a que violenta outros direitos fundamentais. A normatização que se desenha no voto dos ministros do STF até agora não é muito esclarecedora, mas impõe freios e contrapesos à negligente condução dessas empresas nos negócios de mídia.
Organizações tradicionais de notícia são responsáveis pelo que publicam, um dos motivos para a instituição de filtros de confiança na produção de informações. Quaisquer deslizes na apuração dos fatos, no uso de fontes e na forma de expressar os argumentos são passíveis de judicialização. E as penalidades cabem também ao veículo, não só aos “criadores” de notícia.
No atual cenário das plataformas, por outro lado, é como se a garantia pela veracidade do que se diz fosse exclusivamente de quem diz ou, pior, atestada pelo número de curtidas e comentários simpáticos nas mídias sociais. Todo e qualquer tipo de moderação, nesse caso, tem sido tratado como censura.
Central nesse contexto é a concentração de poder das empresas que controlam as plataformas. Em muitos países, o grau de dependência social dos recursos tecnológicos e de infraestrutura mantidos por elas tem efeitos restritivos nos espaços de reflexão coletiva, de diálogo e de cidadania.
O fato de as mídias sociais estarem no topo da preferência pública por consumo de conteúdo, principalmente informação jornalística, é só uma pequena parte do controle sobre fontes de manipulação que a estrutura de governança privada das grandes empresas de tecnologia sustenta.
“Pivotar” os negócios para consolidar a influência das mídias sociais envolve não só estratégias empresariais. O confronto com sistemas judiciais que buscam regular suas atividades, a intimidade com políticas de extremismo no discurso sobre liberdade de expressão, a fragmentação de consensos sobre a realidade por meio da polarização, tudo faz parte do jogo.
Não por acaso, a personalização e a valorização de pontos de vista individuais se sobrepõem à verificação de fatos e evidências há algum tempo no consumo de mídia, temos enfatizado aqui. Mas é importante compreender que sistemas de crença e visões particulares de mundo funcionam hoje como motivações para as decisões de compra no mercado digital.
E conteúdo é commodity de larga escala, é sempre bom enfatizar.
Vício e desinformação
Não existem respostas definitivas sobre como nos deixamos influenciar pela desinformação. Mas a Ciência tem nos dado pistas valiosas sobre isso. Um estudo da Universidade Estadual de Michigan, nos Estados Unidos, sugere que o vício ou o “uso problemático das mídias sociais” nos torna mais vulneráveis.
Um usuário de mídias sociais “problemático” é o que apresenta transtornos comportamentais similares aos de sintomas comuns de dependência. De acordo com o estudo, quanto maior o vício em plataformas, maior a possibilidade de crermos em informações falsas e enganosas.
Essa vulnerabilidade, segundo os pesquisadores, pode estar ligada a características cognitivas de dependência, como a impulsividade. “Viciados” em mídia social parecem fazer menor esforço para avaliar riscos quando decisões precisam ser tomadas e ter maior dificuldade para mudar comportamentos cujas consequências são percebidas como negativas.
Ao fazerem menos esforço analítico para verificar os fatos e se deixarem levar emocionalmente pelos conteúdos que consomem, por impulsividade, usuários “problemáticos” de mídias sociais tornam-se mais suscetíveis a “notícias falsas”. Um dos responsáveis pelo estudo, o professor Dar Meshi reconhece que os resultados apresentam limitações, mas reúnem insights relevantes.
“A chave aqui é reconhecer quando uma tecnologia, neste caso as mídias sociais, começa a ser usada de forma problemática e agir para evitar consequências negativas, tanto pessoais quanto sociais”.
Outros estudos trazem evidências mais amplas de como as mídias sociais têm provocado mudanças comportamentais no consumo de informação. Quem tem opiniões políticas extremistas e é mais conservador ideologicamente, por exemplo, tende não só a acreditar mais em desinformação como se engaja mais na disseminação de fraudes e mentiras.
Em grande medida, tais comportamentos são impulsionados pelos modelos de negócio das plataformas.
Mesmo que usuários não permitam, tem sido frequente a coleta de dados privados para alimentar sistemas de recomendação cada vez mais sofisticados. As plataformas usam algoritmos capazes de conduzir as pessoas de acordo com essas informações confidenciais e persuadi-las a fazer escolhas.
Consumir conteúdo falso pode não ser uma opção racional e consciente na absoluta maioria das vezes, como os estudos têm anunciado. Mas, seja por impulso ou complacência, é mais um sinal de como a dependência em mídias sociais influencia o convívio social na atualidade.
…
Parece estar faltando algo nos debates judiciais sobre o uso das mídias sociais e em que medida as plataformas são responsáveis por mentiras e falsidades espalhadas por seus usuários.
Thomas Meier, professor da Ludwig-Maximilians-Universität de Munique, e Kristina Khutsishvili, docente na Universidade de Cambridge, propõem que as políticas de regulação devem ir além de recomendações que garantam direitos e liberdades individuais.
A erosão da confiança e do diálogo promovida pelas big techs em seus modelos de negócio e sustentada pela estrutura de governança privada de seus donos, cada vez mais ricos, exige uma legislação que recupere a “esfera pública digital”.
Para isso, os marcos normativos precisam alcançar o exercício da cidadania e o reconhecimento de princípios democráticos ancorados por uma “moral em comum”.
Para ir mais fundo
Digital News Report 2025 (Reuters Institute for the Study of Journalism)
Who Owns the Future? Ways to Understand Power, Technology, and the Moral Commons (TechPolicy.press)
Tipología y grado de influencia de la desinformación (nuevatribuna.es)
Tech Power and the Crisis of Democracy (TechPolicy.press)
Tudo que Meta, X, Google e Tiktok não querem que você saiba (Dossiê das Big Techs)
Social media creators to overtake traditional media in ad revenue this year (The Guardian)
Problematic social media use is associated with believing in and engaging with fake news (PLOS.One)
La adicción a las redes sociales está vinculada a una mayor credulidad y difusión de noticias falsas (Laboratorio de Periodismo Fundación Luca de Tena)
For the first time, social media overtakes TV as Americans’ top news source (NiemanLab)
Desinformação nas redes sociais: como ela acontece? (Politize!)
Decisão do STF sobre big techs reforça soberania digital brasileira (Observatório da Imprensa)
Criadores de conteúdo e vídeos online superam mídia tradicional na América Latina, diz relatório do Instituto Reuters (LatAm Journalism Review)
Confiança em jornalismo no Brasil é a pior em uma década (Núcleo Jornalismo)
Brasil perde mais de 2 mil mídias jornalísticas em 10 anos, diz estudo (Agência Brasil)
A grana quase infinita das Big Techs (Núcleo Jornalismo)
Três fatores que desafiam a Democracia no circuito da desinformação em 2025 (Observatório e-Comtextos)
Plataformização da verdade e os novos intermediários da informação (Observatório e-Comtextos)
Valor de informação das notícias contra a "commodity cognitiva" do conteúdo (Observatório e-Comtextos)
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