Onde tudo parece mentira, ceticismo pode minar os fatos com falsas equivalências
Vitória de Donald Trump nas eleições dos Estados Unidos sugere que a retórica para refutar suas alegações infundadas pode ter impulsionado mais votos
BOLETIM SEMANAL #32
Olá, pessoas.
Se tiramos uma lição das eleições nos Estados Unidos é que precisamos avaliar, com muita calma, como a desordem informacional está minando a confiança no regime democrático.
O presidente recém-eleito abocanhou parte significativa dos votos de extratos populacionais tradicionalmente críticos a ele, na contramão das estimativas que davam como acirrada uma disputa eleitoral vencida com folga [1].
Como enfatizou o jornalista
, o argumento de que Donald Trump é um “acidente político” não faz mais sentido [2]. Mas é preciso também reconhecer que as discussões sobre o que é ou não verdadeiro em campanhas eleitorais ganham mais atenção do que propostas de solução para os problemas que enfrentamos.Aqui é Luciano Bitencourt. Eu e Daniela Germann temos percebido em nossa jornada de produção na e-Comtextos que a economia da atenção eleitoral não dispensa mentiras e falsidades. Só que Trump parece ter se favorecido também da retórica usada para refutar suas alegações infundadas.
Você percebe?
Vamos imaginar um cenário onde tudo parece mentira. Imagens realistas simulam eventos que nunca aconteceram, textos fornecem ficções elaboradas para nos persuadir a acreditar em fantasias, vídeos emulam personalidades, trazem dos mortos mensagens convincentes, recriam situações fora de contexto, nada parece autêntico.
Um quadro assim talvez nos leve ao ceticismo generalizado [3]. Duvidar sempre das coisas tem lá seus benefícios. Desperta o senso crítico e nos faz buscar evidências, analisar divergências, aceitar o contraditório.
A dúvida crônica, no entanto, nos faz mergulhar em desconfianças tão profundas que comprimem nossa percepção, reprimem nossa capacidade de diálogo, limitam o campo de visão e a clareza na escuta. É um mergulho no escuro, frio e denso, de incertezas e vulnerabilidades difíceis de superar.
O mega ciclo eleitoral deste ano trouxe todos esses elementos e os concentrou em experiências bem reais de como o cenário distópico que propusemos imaginar vem se materializando. As eleições nos Estados Unidos, além de evocar os indicadores já conhecidos de desinformação, mostraram também fortes indícios de que o ceticismo está minando o benefício da dúvida [4].
Boa parte do discurso de campanha de Donald Trump foi sustentado pela suposição de fraude eleitoral [5]. De eleitores mortos e imigrantes ilegais avolumando votos nos democratas a funcionários eleitorais corruptos e responsáveis por erros propositais no sistema de votação, o repertório é bastante farto, recorrente a cada ciclo e adaptado às circunstâncias [6] [7].
A estratégia para legitimar uma suposta fraude culminava com a antecipação da vitória em um sistema eleitoral descentralizado e lento na contagem de votos. Isso fornecia aos eleitores de Trump o tipo de dúvida ideal para consolidar o ceticismo que leva à desconfiança profunda no sistema. E tudo fazia crer na necessidade de refutar, também antecipadamente, as alegações do então candidato.
Enganou-se quem pensava assim. O discurso da vitória deu-se com sobra na rápida contagem de votos, sem quaisquer possibilidades de contestação, e as fantasias de conspiração sobre fraude foram mudando de lado [8]. Para eleitores do partido Democrata, a discrepância entre as pesquisas de intenção de voto e o resultado das urnas passou a justificar a mesma desconfiança profunda no sistema, até então alardeada somente por extremistas apoiadores de Trump [9] [10].
É provável!
No primeiro mandato do presidente recém-eleito, a mídia noticiosa recuperou um certo prestígio por servir de antídoto às suas alegações infundadas. Pode não ser o caso agora. O fluxo de informações está mais diversificado e o descrédito no trabalho da imprensa é maior entre os estadunidenses. Além disso, as ameaças de Trump são mais contundentes e recebem maior apoio agora.
Margaret Simons, jornalista que faz parte do conselho do Guardian Media Group, lembra que a crise de confiança na grande mídia, como mostram estudos, é anterior à internet. E que “notícias falsas” e desinformação não exercem tanta influência quanto se imagina, a não ser em casos de polarização política.
É verdade que a Democracia e o Jornalismo cresceram juntos, e que ambos se fortalecem, mas não são tão indivisíveis quanto a profissão sugere (tradução livre) [11].
Não por acaso, a tradição de endossar candidatos à presidência dos Estados Unidos por meio de editoriais vem desaparecendo tão rápido quanto o aumento do descrédito nos jornais e nos veículos noticiosos, em geral [12] [13]. Entregue cada vez mais a bilionários que não são do ramo, a indústria da mídia está se revelando um investimento político bastante rentável. A crise e a polarização, ao contrário do que fazem parecer, são moeda forte nesse negócio.
Ao alegarem “neutralidade” como uma resposta plausível à desconfiança do público na produção jornalística, os proprietários de veículos noticiosos favorecem as ameaças que candidatos como Donald Trump têm feito reiteradamente ao trabalho de apurar e verificar os fatos que os contradizem [14] [15] [16]. Não é surpresa esse tipo de omissão na trajetória da imprensa em momentos de repressão a direitos e manipulação de opiniões.
A questão agora é que são as opiniões em escala e sem filtro que manipulam os fatos [17]. Os proprietários das big techs têm usado um tipo de influência ainda mais danosa ao regime democrático por distorcerem o debate público e incentivarem pressões sociais baseadas em alegações descontextualizadas ou inventadas para alimentar um ceticismo nada saudável [18].
Elon Musk e o falecido Twitter que o digam [19]. Pelas mesmas razões que os proprietários de jornais se omitiram, Musk não só endossou pessoalmente a campanha de Donald Trump como fez da sua plataforma digital um palanque para falsidades e discursos ofensivos contra adversários [20] [21].
Quando o The Washington Post perdeu 250 mil assinantes por não apoiar Kamala Harris em editorial, muita gente viu uma reação contundente do público contra um tipo de omissão que pode estar corroendo a Democracia. Mas nunca é demais lembrar que este é também um sinal de desconfiança profunda na mídia noticiosa.
Rastreando…
Entre duvidar e descrer existe uma lacuna perigosa para a convivência democrática. Quem tem dúvidas, desconfia, contesta, questiona. Quem descrê, nega, rejeita, renuncia. O jornalista Jon Allisop, do Columbia Journalism Review, propõe que a imprensa enfrente os quatro anos de governo Trump pela resistência [22].
Por um lado, os limites de tolerância estão mais demarcados a cada avanço do extremismo [23]. Por outro, a importância do posicionamento político tem cada vez menos relação com cores partidárias.
É preciso considerar, contudo, que a resistência à candidatura de Donald Trump e o esforço de refutar as mentiras que ele transformou em propaganda eleitoral - é só um palpite - tenham ampliado seu desempenho nas urnas [24].
Os jovens, as mulheres, os negros e os latinos, supostamente favoráveis às políticas mais “liberais” dos democratas, foram afetados pelas manifestações inapropriadas do presidente eleito quando em campanha, mas não como se acreditava.
Ao que tudo indica, as percepções dos eleitores e suas escolhas nas urnas não são moldadas exclusivamente pelas mentiras disseminadas para manipular opiniões, tampouco pela produção de notícias para contrapor os fatos a opiniões que manipulam pela mentira.
É notório que os politicamente desinteressados, os que efetivamente decidem uma eleição, não estão sendo alcançados pelas notícias que poderiam levá-los a tomar decisões mais embasadas. Talvez porque a veracidade e a autenticidade na elaboração de versões fidedignas sobre os fatos não convivem com falsas equivalências.
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